O olhar que devolve o espanto: “Não! Não Olhe!” e o cinema de Jordan Peele

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17 de outubro de 2025 | 1 Comentário

Criatividade e inovação são virtudes cada vez mais escassas nas grandes produções contemporâneas. Em meio a fórmulas repetidas e narrativas previsíveis, a originalidade se tornou um gesto de “resistência” (engraçado, né?). O que torna uma obra criativa, no entanto, é algo subjetivo: o que desperta fascínio em um espectador pode passar despercebido por outro. Ainda assim, há filmes que, logo nos primeiros minutos, carregam uma assinatura inequívoca. “Esse filme é de Jordan Peele, certeza.” Não! Não Olhe! pertence a essa categoria, uma obra que evidencia, do início ao fim, o domínio de um diretor sobre o próprio imaginário.

Terceiro longa de Peele, o filme reafirma sua posição como um dos autores, para mim, mais instigantes do cinema atual. Após Corra! (2017) e Nós (2019), o cineasta amplia seu repertório ao construir uma ficção científica que dialoga com o terror, o western e o comentário social. São gêneros aparentemente díspares, mas que se combinam em uma narrativa sobre a própria imagem, seu poder e sua violência. É imensamente satisfatório quando uma obra transmite, com clareza, que foi feita com rigor e propósito. Não! Não Olhe! é exatamente isso: cinema consciente de si mesmo.

Jordan Peele não poupa esforços para impressionar, e o faz com uma confiança rara. Como amante do sci-fi e alguém que sonha em um dia dirigir dentro desse gênero, não há como não se sentir atravessada pela ousadia do filme. Ele bebe de muitas fontes, mas as transforma em algo singular: um mosaico de influências, sem nunca soar derivativo. Em vez de reproduzir convenções, Peele as reconfigura.

O filme constrói uma tensão constante, uma sensação de ameaça que nunca se revela por completo. A câmera parece buscar, junto ao espectador, o inimigo invisível, e é justamente essa busca que mantém o suspense vivo. A cinematografia de Hoyte van Hoytema é hipnótica: o escopo amplo, o contraste entre céu e deserto, a maneira como o olhar se perde na imensidão. O som desempenha um papel igualmente fundamental. A trilha e os ruídos, do vento, dos cavalos e das máquinas, ampliam a sensação de estranhamento. É um filme que se ouve com o corpo inteiro.

As performances de Daniel Kaluuya e Keke Palmer são irretocáveis. Ele, contido e introspectivo, encarna o peso histórico da desconfiança e do silêncio; ela, expansiva e pulsante, busca a validação do espetáculo. Peele constrói neles uma metáfora potente sobre a herança de apagamentos no cinema e a luta por visibilidade. O discurso de Emerald sobre o jóquei negro do primeiro registro cinematográfico não é apenas um detalhe, é o centro ético da narrativa, o lembrete de que o olhar negro sempre esteve lá, mas raramente foi reconhecido.

Há, em Não! Não Olhe!, uma recusa consciente do vitimismo. O “nope” sussurrado por OJ diante do perigo é também um gesto político, uma recusa em repetir papéis de submissão e sofrimento. A partir dessa negação, o filme afirma uma outra forma de heroísmo: sobreviver, resistir e, sobretudo, narrar. Quando o horror se aproxima, a câmera volta a ser arma e testemunha.

O mais fascinante, porém, é a maneira como Peele injeta nesse discurso denso um senso de entretenimento genuíno. Não! Não Olhe! é divertido, cheio de ritmo, e ainda flerta com o imaginário do western, com cavalos, poeira e horizontes vastos.

Talvez a grande virtude de Não! Não Olhe! esteja em sua capacidade de conciliar o espanto e a reflexão. O filme olha para o céu, para o mistério e o terror, mas mantém os pés firmes no chão da história. Entre o mito e a prova, entre o sonho e a evidência, Jordan Peele constrói um cinema que pensa e, ao mesmo tempo, encanta.

Confira o trailer:

1 Comentário

  1. Luís Ernesto Pereira

    Sensacional!!! Estou com vontade de assistir este filme agora, mesmo que eu tenha bastante medo de filmes de terror kkkkkkkkkk. Excelente crítica!

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